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quarta-feira, 29 de outubro de 2008

Identidade e Diferença: revendo as perspectivas dos estudos culturais na obra organizada por Tomaz Tadeu da Silva


SILVA, Tomaz Tadeu da (org). Identidade e Diferença: perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis-RJ: vozes, 2000.




Resumo[1]: Em três artigos: “identidade e diferença: uma introdução teórica conceitual”, de Kathryn Woodward, “A produção social da identidade e da diferença”, do organizador, Tomaz Tadeu da Silva e “Quem precisa da identidade?” de Stuart Hall compreendem o conjunto dessa abordagem que debate a questão da identidade dentro do horizonte dos estudos culturais, ou, dito de outra forma, a análise das representações de mundo e a identidade no interior dos grupos marcada pelas diferenças sendo essas diferenças consciência identitária de grupo.


No primeiro artigo, “identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual”, Kathryn Woodward parte do problema étnico iugoslavo para tecer algumas considerações a cerca de identidade e representação. Interagindo com Stuart Hall, a autora apresenta a representação como mecanismo simbólico de classificação do mundo e de nossas relações dentro desse mundo. De fato, o outro não é o que eu defino com sendo o outro, o que penso que seja o outro é apenas uma representação que faço dele. E, nesse sentido, pode-se afirmar que o outro encontra-se completamente representado embora também me represente.


Embora numa perspectiva filosófica existencialista, a idéia de Schopenhauer transcrita em sua obra “o mundo como vontade e representação” onde ele afirma que o próprio mundo é a representação do indivíduo, colabora para o entendimento da representação aludida em Woodward. Para o filósofo A vontade se apresenta pelas representações e é por meio do princípio da individuação e da razão que a vontade usa “roupagens” múltiplas para ser-no-mundo sendo a representação expressão da vontade disfarçada que disputa a matéria em um espaço-temporal. A relação entre vontade, representação e outro é apresentada através do impulso cego que tende à anulação do outro. Assim, um corpo habitado pela vontade não vê outro senão como inanimado, um meio para satisfação como qualquer objeto, decorrendo daí, tal como em Hobbes, uma natureza onde o homem é o lobo do homem.


A relação entre Schopenhauer e Woodward, numa citação um tanto simplista, pode ser explicada no fato de que o mundo, e outro, são representados; mas ao mesmo tempo o eu encontra-se representado pelo outro. Essa representação, contudo, como bem esclarece Edward Said em “orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente, é feita por mecanismos de negação. No foco de “identidade e diferença” de Woodward é possível perceber essa relação de oposição na própria forma como a identidade é definida. Nesse sentido o eu e o outro são duas existências que se interpõem numa relação que, mesmo sendo de oposição, é básica para o próprio fundamento da identidade, uma vez que está é marcada pela diferença, ou, em outras palavras, a negação do outro é afirmação do eu, daquilo que sou, porque ele não. A autora, recorrendo ao caso sérvio-croata explica:


A identidade sérvia depende, para existir, de algo fora dela: a saber, de outra identidade (croata), de uma identidade que ela não é, que difere da identidade sérvia, mas que, entretanto, fornece condições para que ela exista. A identidade sérvia se distingue por aquilo que ela não é. Ser sérvio é ser um não-croata. A identidade é, assim, marcada pela diferença.
(p. 09).

Numa análise mais apurada sobre a identidade a autora diz que ela é construída simbólica e socialmente. Simbolicamente pode ser percebida a partir dos valores nacionais, comida, expressões culturais –do que poderia dizer que língua é seu principal elemento –à coisas mais banais como o uso de cigarro evocado numa narrativa ilustrativa utilizada pela autora. Socialmente, seria de muita riqueza para o entendimento desse aspecto a revisão de Halbwachs em “a memória coletiva” o grupo social é apresentado como referência essencial à memória, história, tempo e espaço –que também são noções que remetem à compreensão da identidade. Sinteticamente, pode-se dizer que a representação é o meio pelo qual o grupo cria símbolos que significa e que dá sentido à experiência humana. Nas palavras da autora:

A representação inclui as práticas de significação e os sistemas simbólicos por meio dos quais os significados são produzidos,posicionando-nos como sujeito. É por meio dos significados produzidos pelas representações que damos sentido à nossa experiência e àquilo que somos. (p. 17).


A representação é, assim, um processo cultural de significação da experiência humana. Essa significação é inerente à identidade que por sua vez, dentro da dinâmica humana, não pode ser estável e imutável. A esse respeito, a autora não ignora a grande mobilidade internacional nos processos migratórios e suas conseqüências para as identidades de quem migra e das comunidades que recebem esses “intrusos” sucedendo-se a partir daí um processo onde ambos os grupos passam por uma transformação mudança que nem sempre é harmoniosa. Se a “migração produz identidades plurais”, afirma a autora, “produz também identidades contestadas” e a conseqüência disso são as desigualdades.


Evocando a diáspora –não só do povo judeu, mas acredito que poderíamos falar de todos os grupos internacionais que procuram fugir da pobreza e do desemprego –e o caso dos países do Leste Europeu –Ex. URSS –é que a autora analise a crise da identidade. Desestabilizadas e desestabilizadoras, as identidades desses grupos em movimento encontram suporte em certezas étnicas e históricas num espécie de retorno às origens. Nesse retorno podem recorrer ao recurso histórico –à história nacional – e às certezas étnicas já mencionadas, como por exemplo uma pretensa inglesidade frente as imigrações.


A identidade não é estática porque os grupos humanos são dinâmicos. Muitas mudanças sociais são processadas no interior dos grupos –como por exemplo o fim da URSS – e novos grupos podem surgir a partir de situações novas ou velhas. Há pessoas que se identificam enquanto grupo a partir das lutas por direitos dos homossexuais. A prática social é marcada simbolicamente porque o que move o grupo é, antes de tudo, sua representação de mundo. Nesse sentido, as identidades são diversas e instáveis. Fato é que, essencialmente, a identidade é aquilo que distingue o grupo do outro e por isso precisa refletir a dinâmica desse grupo. Ela é o oposta da diferença –por que o grupo é aquele que tem uma identidade comum –mas precisa da diferença –por que o grupo é o que o outro não é. A autora recorre ainda ao extraordinário trabalho de Claude Lévi Strauss que analisa a significação e a reprodução das relações sociais em Durkheim a partir da comida e que cuja base pode ser simplificada a partir da sentença de que “a cozinha estabelece uma identidade entre nós”. Pelo que “representa” simbolicamente, “aquilo que comemos pode nos dizer muito sobre quem somos e sobre a cultura na qual vivemos” (p. 42). Quem poderá negar que o pequi é símbolo da goianidade?


O segundo artigo, “a produção social da identidade e da diferença” é uma seqüência das primeiras proposições. Numa abordagem mais voltada para a aplicação pedagógica, Tomaz Tadeu procura aprofundar o tema do multiculturalismo criticando uma postura pacifista que defende a tolerância e respeito à diversidade e a diferença, mas não procura debater a produção da identidade e da diferença. Ele principia seus argumentos classificando a identidade como sendo aquilo que se é e a diferença como aquilo que o outro é. Nesse sentido, sem a diferença, a identidade perderia sua razão de ser, ou pelo menos de conceituação.


Todavia, embora possa parecer tão natural, o autor defende que identidade e diferença são criações da linguagem, ou seja, parafraseando Woodward, são representações. Mais os signos da linguagem têm significação apenas quando em relação a um conjunto de outros signos que lhe são opostos. De outro lado o autor antevê que é no universo social que a identidade e a diferença são reconhecidos e que sua definição discursiva –e lingüística –“está sujeita a vetores de força e relações de poder” (p. 81). Esse viés atribuído a questão da identidade e da diferença por Tomaz Tadeu é interessante porque acrescenta o debate sobre os conflitos sociais e as desigualdades ao ambiente da discussão, sem o qual, penso eu, ficaria incompleta as análises dos temas. Complementar a isso Florence Carboni e Mario Maestri, em “A linguagem escravizada” apresentam uma crítica contundente a esse sentido atribuído à linguagem onde se nega sua característica de elemento de classe produzida num espaço de poder e se pretere, como elemento de análise uma pretensa neutralidade, como se ela fosse supra-social e supra-histórica.
Essa teia de poder inclui e exclui, classifica e demarca fronteiras. Nesse sentido, a divisão do mundo entre puros e impuros, por exemplo, é uma forma de classificar e a própria identidade étnica ou racial é evocada para demarcar diferenças uma vez que, por exemplo, numa sociedade onde prevalece a supremacia branca, ser branco é natural, não é étnico nem racial. O étnico e o racial entram em cena para classificar o outro, o diferente.


Recuperando questão da linguagem aplicada no contexto da identidade e da diferença, nós brasileiros sabemos que os valores e a língua portuguesa resultou de uma imposição. Essa imposição explica um hibridismo que, embora favoreça o grupo predominante –não em número mas pela força –é de mão dupla uma vez que atinge dominados e dominadores. É preciso lembrar contudo, que “quem tem o poder de representar tem o poder de definir e determinar a identidade” (p. 91). Assim, torna-se fundamental identificar a produção da identidade e da diferença, ou dito de outra forma, questionar os sistemas de representação que lhes sustentam.
A produção da diferença e da identidade pode ser explicada através da performatividade que tem mais a ver com o tornar-se do que com o ser. Para maior esclarecimento a performatividade é apresentada como sendo proposições como “eu vos declaro marido e mulher”, “declaro inaugurado esse momento”, ou “te prometo que te pagarei”. Até aí tudo natural. Todavia quando se diz “aquele negão é ...” se reforça a negatividade do ser negro. Isso é performatividade que explica a formação da diferença uma vez que o termo “negão” só tem sentido se já cristalizado, o que requer aceitação coletiva.


Tomaz Tadeu conclui apontando para um processo pedagógico que supere a mera convivência com a diferença. A negação da identidade como um dado a priori; como um destino do qual sejamos vítima, é inaceitável. Enquanto construção social que se dá num jogo de relações que envolvem inclusões e exclusões, poder e força, a ação didático teria efeito mais positivo porque colaboraria para o desvendamento do processo de produção da identidade, o que possibilitaria aos grupos a percepção política da identidade com, conseqüente, negações e aceitações conforme a conveniência do grupo.


Nesse clima conclusivo, Stuart Hall em “Quem precisa da identidade” faz uma análise conceitual da identidade perpassando pelo campo da psicanálise para concluir que a identidade não é um conceito essencial, idéia já apresentada em Tomaz Tadeu, mas um conceito posicional. As identidades, estabelecidas pelas diferenças, constituem posições que os indivíduos precisam assumir, assim se fosse realmente necessário dar resposta à pergunta sobre quem precisa de identidade, certo seria dizer que todos os indivíduos enquanto integrante de um grupo precisa de identidade que o ligue a esse grupo.


Conclusão

Essa obra, indicada na seleção de mestrado da Universidade Federal de Goiás, integra-se num conjunto de estudos que debatem a identidade no horizonte da história cultural numa perspectiva crítica e, acrescentaríamos com propriedade, reflexiva. Mesmo na obra de Said, sobre a qual ainda dedicaremos algumas palavras, a imagem que o ocidente faz do oriente corresponde a um confronto identitário. O que é importante notar é que a identidade e a diferença são dois valores complementares que ao se oporem, têm a sua razão de ser.
Penso que enquanto proposta de estudo histórico a presente proposta contribui para a valorização do grupo e, sobretudo no artigo de Tomaz Tadeu, sinaliza uma possibilidade de que haja uma insurreição contra a prática tão comum do discurso pedagógico que caracteriza as diferenças apenas como circunstâncias a serem aceitas sem que se debata a sua produção e os elementos subtendidos nessa produção.



Bibliografia:



CARBONI, Florence e MAESTRE, Mario. A linguagem escravizada. 2ª ed. São Paulo: Expressão Popular, 2003.



SCHOPENHAUER, Arthur. O Mundo Como Vontade e Representação – Livro III. Brasil: Domínio público/ebooksbrasil.com. in: www.ebooksbrasil.org/eLibris/representacao3.html, acessado em 29 de outubro de 2008.


[1] Por Moisés Pereira da Silva, professor de História na rede pública estadual do Pará. Licenciado em História e Pedagogia pela Universidade Estadual de Goiás, UEG, e mestre em História pela Universidade Federal de Goiás, UFG.