Abel Ferreira com o celular do produtor Pedro Spinelli |
Isso é história do, e no, cotidiano. Os maiores progressos da teoria da história, especialmente a partir dos annales, foi a percepção de que tudo é história, inclusive a dimensão cultural de um povo. Nesse sentido, quem nasceu no Brasil, e já concluiu o ensino médio, só ignora os usos políticos da copa de 1970 pelas falhas da nossa educação, especialmente no ensino de história. A copa do mundo de 1970 foi o evento esportivo de maior cobertura midiática até então e, desde o jingle às relações da seleção brasileira com o governo militar, tudo era estrategicamente montado em favor do imaginário de um país que estava dando certo, embora vivêssemos uma ditadura sanguinária.
Esse exemplo ilustrativo das relações entre futebol e história pensados no Brasil dos anos 70 se estende ao que chamamos de história das mentalidades para entendermos o fenômeno da Decolonialidade, ou de como um homem europeu, o Abel Ferreira, se percebe racional na relação com outro homem, o brasileiro, que é irracional. Nesse imaginário, a ciência, Deus e a civilidade são bens propriamente de homens brancos na mesma medida em seus contrários são próprios e próprias de não-europeus, ou negros para ser mais exato. E que se diga claramente, ser negro, nessa perspectiva, não tem relação direta com a cor da pele, mas simplesmente com a condição de não-europeu. Obviamente, pelo mito da origem, norte americanos, australianos e canadenses gozam da condição de europeus.
Entre outros, a intelectual equatoriana Catherine
Walsh, o sociólogo peruano Aníbal Quijano e o grande filósofo e psiquiatra da
Martinica Frantz Fanon explicam a Decolonialidade como um movimento em que
somos convidados a olhar para trás, para o processo colonial, para entender como
esse processo edificou-se um sistema de representação do mundo. Essa representação
funciona como mecanismo de divisão de uma ordem global. De um lado, o europeu,
branco, civilizado e cristão; do outro, o não-europeu, inculto, bárbaro e
pagão. Essa segunda forma de existência só pode qualificar-se na relação,
redentora, com o que já é bom, civilizado e racional. Essa mesma ordem vai se
reproduzindo microscopicamente, ou seja, em cada lugar, a exemplo do Brasil, ou
Uruaçu em Goiás, quem esteja mais próximo do ideal europeu, em termos de pele e
de valores, tanto mais terá respaldo social, aceitação e acesso aos bens
produzidos pela sociedade; proporcionalmente, a distância entre esse modelo ideal
implica dificuldade de acesso aos bens, inclusive trabalho e renda, na mesma
medida.
Para o Abel Ferreira, todos nós somos brasileiros e, por consequência, não-europeus. Inferiores, também por consequência da origem brasileira, não consegue entender o treinador português, como árbitros podem contrariá-lo tanto. Então, quase sempre é expulso de campo. Expulso, usa a mesma justificativa que usa quando seu time não consegue a vitória, é culpa da cultura e do futebol brasileiro. Abel Ferreira acredita ainda ser nosso colonizador. Abel Ferreira nos vê como nos viam os portugueses 523 anos atrás. E é justo que se diga, em história ou em cultura histórica, 523 anos é logo ali, é como ontem. Do ponto de vista do colonizador, sabendo como os brasileiros são tratados em Portugal, não me surpreende essa soberba. Somos nós, brasileiros, que precisamos entender a longa duração da Colonialidade, a sua permanência entre nós. E infelizmente, pela própria lógica desse sistema-mundo, muitos não entendem.
Quanto ao colonizador, ainda não é possível a Abel Ferreira, sobretudo em face da cortina de proteção em sua volta, entender as bandeiras corintianas no contexto das diretas:
“Ganhar ou perder, mas
sempre com democracia”.
Da minha parte, fico triste em ver que a imprensa brasileira prefira ser condescendente a proteger os profissionais perseguidos por fazerem o seu trabalho [o Paulo Roberto Martins que o diga!].